O pesadelo de um mundo em rede
(Texto de Amador
Fernandez-Savater, co-editor de Acuarela Libros, no blog Interferencias, em 24/7/2015, sobre o livro “La hipótesis cibernética”, do coletivo
Tiqqun. Tradução: Haroldo Gomes)
“Naquele
Império, a Arte da Cartografia conseguiu tal Perfeição que o Mapa de uma só
Província ocupava toda uma Cidade, e o Mapa do Impéri, toda uma Província.
Com o tempo,
esses Mapas Descomedidos não satisfizeram e as Escolas de Cartógrafos
levantaram um Mapa do Império, que tinha o Tamanho do Império e coincidia
pontualmente com ele. Menos Adeptas ao Estudo da Cartografia, as Gerações
Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o
entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste
perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em
todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas
(Borges, “Del
rigor de la ciência”)
As distopias
ou “utopias negativas” são obras de ficção que levam até um extremo de pesadelo
elementos ou tendências reais já ativas no presente. Entre as mais conhecidas
estão, por exemplo, 1984 de George
Orwell ou Um mundo feliz de Aldous
Huxley. Não posso evitar ler La hipótesis
cibernética, do misterioso não-grupo Tiqqun,
como uma obra desse tipo. Um relato, por sua vez real e irreal, que adverte e
alerta sobre algo. Sobre o quê? O pesadelo que se desenha aqui é o de um mundo inteiramente organizado em rede:
transparente, conectado, dinâmico, auto-organizado, fluído. Uma leitura que
produz vertigem, sobretudo entre os que temos pensado em algum momento a rede
como metáfora-ferramenta de emancipação. Talvez por isso, para me proteger,
leio este ensaio como uma obra de ciência-ficção: “exageram, só é um mal sonho”.
Seguro?
Da hipótese liberal à hipótese cibernética
Diz-se
que o liberalismo surgiu como meditação sobre a guerra e o anseio de paz. Como se
podiam evitar, de uma vez por todas, conflitos armados tão devastadores como os
que assolaram na Europa durante os séculos XVI e XVII? Era necessário encontrar
outro motor dos comportamentos humanos distinto da paixão, do prejuízo, da superstição,
do afã de poder. Qual? O liberalismo respondeu: a razão e o interesse. Um ser
humano se comporta racionalmente quando, livre da paixão, do prejuízo, da
superstição ou da vontade de poder, atua segundo seu próprio interesse, bem
entendido. Existe, além disso, por analogia com a mecânica de Newton, uma “harmonia
natural” entre os interesses humanos: a famosa “mão invisível”. Um bom governo,
portanto, é o que intervém o menos possível, um governo “frugal”. Suprimindo
progressivamente todas as ingerências externas a esse modelo (no melhor dos
casos, por meio da educação), a sociedade poderá finalmente tornar-se pacífica,
próspera, feliz.
A
esquerda em nossos dias segue, em geral, empenhada em atacar e desmontar a
hipótese liberal. Nesse sentido, podemos entender por exemplo a crítica da “economia
neoclássica” que se baseia, ainda hoje e contra toda evidencia, nos
pressupostos do primeiro liberalismo: a confiança na racionalidade do indivíduo
– consumidor (que tende a “maximizar o prazer e fugir da dor”) e a confiança na
racionalidade do todo como uma soma harmônica das partes (a tendência ao
equilíbrio entre a oferta e a demanda, entre os bens, os preços e o trabalho,
etc). Todavia, se damos ouvido ao Tiqqun, erramos o tiro ao pensar que nosso
inimigo é o neoliberalismo, entendido simplesmente como atualização do
liberalismo clássico. O liberalismo está morto e enterrado, nos campos de
batalha das duas Guerra Mundiais, nos efeitos da crise de 29, etc. Hoje vivemos
sob o império de outro paradigma, do qual em todo caso o liberalismo é a
cobertura ideológica: a Hipótese
Cibernética.
A
Hipótese Cibernética (HC) surge também como mediação sobre a guerra e o anseio
de paz. Como podem se evitar as matanças das guerras mundiais, os desastres
econômicos, o antagonismo das revoluções comunistas? Há algo na hipótese
liberal que não funciona, que não dá resposta a estas interrogações. A HC se
inspira na teoria cibernética (“ciência do governo e do controle sobre a
máquina e o animal”) fundada pelos cientistas e engenheiros Norbert Wiener,
Claude Shannon, Gregory Bateson ou John Von Neumman, e com múltiplas prolongações
até nossos dias (tecnologias da comunicação, inteligência artificial, ciências
cognitivas, etc). Três chaves importantes dessa teoria seriam, para o que nos
interessa:
· A ordem (diminuição da entropia) é pouco provável,
o mais provável é o caos (ou aumento da entropia). Governar o comportamento de
pessoas ou máquinas exige mecanismos de controle que assegurem a ordem, contrapondo
a tendência à desorganização.
· A chave do governo (“conduzir a conduta”) é a
informação. A informação é estatística por natureza e se organiza segundo as
regras da probabilidade. Conhecer os padrões de conduta do presente nos
permitirá predizer e guiar as ações futuras. A informação (já não o interesse)
é a “linfa vital” da ordem cibernética.
· O controle é, em definitivo, um problema de
informação e se consegue otimizando a comunicação entre as partes: o feedback
(ou intercâmbio de informação) é chave na teoria cibernética.
Portanto,
a HC já não confia na racionalidade do indivíduo (muito imperfeito, limitado,
ignorante de si mesmo), nem tampouco na tendência ao equilíbrio do conjunto (e
sim, o contrário), senão que trabalha na construção deliberada e consciente de um novo entorno social: um sistema-rede
de nós transparentes, em conexão e desconexão permanente, organizado em torno
da gestão ótima da informação. O capitalismo cibernético. O pesadelo.
Esse novo
entorno, o capitalismo cibernético, seria: um
mundo transparente, traduzida na íntegra a informação, onde cada gesto,
cada serviço, cada decisão e cada processo geram uma massa de dados, a
processar posteriormente por máquinas, algoritmos, regras automáticas; uma sociedade-rede, onde toda relação se
estabelece como feedback ou interação. Um vínculo eletivo, altamente funcional,
no qual o outro aparece (e desaparece) à vontade: conexão e desconexão entre
nós transparentes (perfis); e um sistema dinâmico, onde os fluxos
mercantis se confundem com fluxos de informação. A lógica cibernética não pensa
em termos de produtos, estados ou sujeitos, nem de tempo e espaço, mas de
fluxos, de meios fluidos, velozes e acelerados.
O governo cibernético
O que
significa “governar” no paradigma cibernético, em que consistiria um governo
cibernético? O termo “Kubernesis”
significa “piloto” ou “regulador”. E justamente essa é a função do poder na HC:
pilotar no meio de superfícies em movimento, regular permanentemente fluxos em
circulação.
Governar,
assim, não seria tanto impor ou legislar, mas “coordenar racionalmente os
fluxos de informações e decisões que se produzem ‘espontaneamente’ no corpo
social”. Pensemos em Google, em Facebook, nos projetos de smart cities... Trata-se sempre de monitorar a realidade, de
recolher, processar e conectar dados, de dar acesso e fazer de cada usuário um
co-desenvolvedor, de buscar a cooperação público-privada, etc. Quanto mais
saibamos, mais capacidade de gestão em tempo real e mais capacidade de
antecipação teremos. Governar é se fazer predizível. Também, evidentemente, os
comportamentos desviados, os crimes.
Em três
sentidos, pelo menos, estamos diante de um tipo de poder diferente. Em primeiro
lugar, o governo cibernético não é vertical nem autoritário, ao menos em
primeira instância, porque assim perderia muita informação. Pelo contrário, é
um governo que sabe grudar nos territórios que administra, através de uma rede
de sensores ou captores inteligentes de informação (humanos ou máquinas). Não
governa como uma instância alheia e exterior, mas que produz na medida do
possível com os governados como fonte de feedback (“participa”, “fala”).
Em
segundo lugar, o governo cibernético não é um governo sedentário ou estático, mas
“uma dinâmica de auto-organização”. Um tipo de ordem que não nega o caos, e sim
busca permanente o equilíbrio no desequilíbrio. Um governo capaz de seguimento
de fluxos, processos, devires, através de dispositivos nômades de rastreamento
e traçado (mais um bracelete eletrônico do que um cárcere). Um governo sempre “à
escuta”, através de sondagens, pesquisas e estudos.
Por
último, o governo cibernético não é um governo centralizado, mas mediador. Não só interconecta máquinas,
processos, informação, pessoas e capitais, mas que apaga as velhas fronteiras
da arquitetura liberal do poder (público-privado, etc) articulando esferas
heterogêneas: fragmentos de Estado, sociedade civil, movimentos sociais.
Lida em
nosso contexto particular, a distopia de Tiqqun produz um certo calafrio. Um
tal não pode deixar de pensar que “a nova política” é o agente histórico
destinado a acometer a passagem do velho ao novo capitalismo (cibernético) no
plano das instituições. Os “pilotos” da HC não podem ser “pessoas envelhecidas”
que temem ou desconhecem as redes, mas tem de ser “nativos digitais” que a
assumem como paradigma ou “imagem do mundo”: uma forma de ser, de fazer, de
pensar e, agora também, de governar.
O mal estar
Um amigo
viajou há pouco para uma cidade distante que desconhecia. Saiu do aeroporto e
foi de ônibus até o centro, ali tirou o celular e ativou Google Maps. A tela
chamava sua atenção claramente sobre um ícone, clicou e era seu hotel, muito
próximo de onde se encontrava. Felicidade. Pronto poderia descansar num lugar
seguro. Porém... um momento, um momento, como demônios sabia o Google qual era
o seu hotel? Que cruzamento de dados...? Mistério. Esta sensível anedota, que
pode ressoar em cada um com uma historia similar, nos fala do caráter duplo,
ambivalente, da ordem cibernética. Por um lado, as mil possibilidades que nos
oferece de conexões, saber, visibilidade, ajustando-se a nossa vida como se
fosse uma luva; por outro, uma certa sombra de inquietude, um ruído de fundo de
mal estar (que não se reduz nem muito menos à questão da “privacidade”).
Vamos nos
deter agora nessa parte de sombra, que é onde poderiam surgir as rebeliões e
alternativas à HC. De que tipo é esse mal estar? Algumas instituições,
recolhidas de conversações, livros ou de observações de mim mesmo:
A transparência, na ordem cibernética, implica
ficar reduzidos a “perfis”. Converte a experiência em estatística. Porém, não
somos perfis, mas singularidades com tons, vibrações e acentos próprios. Não
somos “signos”, abstrações comunicáveis e intercambiáveis, mas algo muito mais
parecido com um hieróglifo, um labirinto, uma rugosidade. Não somos “muros”,
onde todo o mundo vê de nós as mesmas coisas e ao mesmo tempo, mas “seres em
situação”: distintos segundo o contexto que atravessam, a trama de relações na
qual se encontram, etc. A “perfilização” é uma mutilação da
multidimensionalidade da vida, por exigência de representação.
Além
disso, a transparência substitui as relações de confiança por relações de
controle. Deixa passar a luz, porém uma “luz que queima”: o olhar do inquisidor. No lugar de nos dar
confiança, construindo situações e contextos de igualdade, nos tornamos
vigilantes e juízes uns dos outros, numa espécie de panóptico distribuído,
participativo.
A velocidade na ordem cibernética, significa por a
vida entre parênteses. Tem que correr sempre mais, produzir para seguir
produzindo, atualizar permanentemente nossa imagem, muro ou perfil. Não há
tempo, nem espaço, só fluxos em aceleração permanente. A urgência é a
temporalidade própria da cibernética (e os nervos a flor da pele, seu clima
afetivo). Tem que eliminar tudo o que estorve e nos faça mais lentos, os lentos
são perdedores. Porém uma relação, um processo de criação, uma dor, têm seus
próprios tempos, heterogêneos à temporalidade da urgência. À muita velocidade
não se pode elaborar nada, só aplicar respostas automáticas, superficiais,
descuidadas.
Não se
pode mudar de sentido, girar, bifurcar, só correr até para a grande bofetada.
Não se pode pensar ou criar se nada nos opõe resistência.
A conexão, na ordem cibernética, reduz a relação à
interação. Porém os seres humanos não nos “conectamos”, nos afetamos, batemos,
pelejamos, nos ferimos, etc. Não “comunicamos”, descodificamos uma sintaxe ou
deciframos uma informação, mas vivemos no mal entendido, traduzindo uma e outra
vez aos demais (ou seja, traindo o original). Um encontro não é um link ou um feedback (“gosto”, etc). O
mal estar, aqui, consiste na pobreza e na superficialidade das interações. Tão
fáceis quanto insatisfatórias. Na conexão há vínculo instrumental, pontual, à
vontade. Na relação há desejo comum, sentido partilhado, viagem com o outro.
Estratégias de subversão
“Em nossa época, sobre nosso planeta, conhecer um
ser humano significa interrogar-lhe até a vivissecção. Todos sabemos a carga
sádica que pode conter a palavra pergunta. O inquisidor a invade toda. Conhecer um ser humano significa, de
fato, não lhe deixar nenhuma possibilidade de existir. Então, não lhe pergunto,
lhe olho, lhe toco, lhe respiro, comocionado pela força desconhecida que me
comunica”
(Jean
Ipousteguy)
Qual é o
problema com a HC? Poderia pensar-se que se trata de uma hipótese boa, correta,
porém ainda não realizada plenamente. Tratar-se-ia, então, desde essa posição,
de reclamar mais transparência, mais comunicação, mais participação, mais
redes, mais proximidade entre governantes e governados, uma melhor
representação, em definitivo.
A aposta
de Tiqqun é todavia muito outra: considera má e errada a HC. Desde um ponto de
vista filosófico: pela idéia do ser que implica. Para Tiqqun, a vida não é
informação, nem pode se reduzir a ela sem dano. Os corpos não são nós
transparentes, os encontros não são ligações, o tempo não é o tempo real. Ainda que a HC se pense e se
apresente como um poder horizontal, na realidade segue sendo uma forma de poder
normativa, coativa, exterior. Destrutora, portanto, de todo verdadeiro habitar.
Para
Tiqqun, então, não se trata tanto de aperfeiçoar ou radicalizar a HC, mas de devir irrepresentáveis: opacos a seu
olho de ciclope, ilegíveis para suas máquinas binárias de sentido,
impredizíveis para suas técnicas de controle.
Como? Em
sua contra-fábula, Tiqqun propõe numerosas estratégias. Fá-lo poeticamente, porque não se trata de
convencer, nem de orientar a opinião e a ação de ninguém, e sim de insinuar e
sugerir formas de resistência que logo cada qual terá que configurar, ensairar,
etc. A resistência à HC tem que começar pelos modos de se comunicar. O
contrário da transparência não é o hermetismo, mas o poema. Ou seja, formas de
escrever que não embrutecem, que não entontecem, que deixam espaço e liberdade
ao leitor.
Vamos
apontar, então, para concluir, três dessas estratégias, deixando-as
deliberadamente imprecisas para que a imaginação voe: lentidão, ritmo e névoa.
Lentidão não é ir devagar, mas
desacelerar: aprender a desconectar e nos desconectarmos dos fluxos do
capitalismo cibernético. Desconectar nossa própria cabeça, em primeiro lugar. É
a arte da interrupção: fuga, sabotagem sutil ou levantamento coletivo. Se a
velocidade implica a resposta automática e superficial, a insensibilização para
o entorno, a irritação constante diante do que nos faz obstáculo, a
desaceleração dos fluxos abre, pelo contrário, a possibilidade do processo e do
encontro. Permite dar-se tempo. Para olhar para os lados e não só para frente.
Para ver, sentir ou pensar as situações que habitamos. Para que o novo possa
acontecer.
Ritmo: não se trata de ir lentos ou
rápidos, mas de encontrar nosso próprio tempo. Porém o ritmo, diz Tiqqun, é
necessariamente “coxo”. É belíssima a metáfora da “coxeadura” em Tiqqun.
Caminhamos, porém nunca um passo é igual a outro. Há sempre imperfeição,
dissonância. A vida vai e vem, entre a palavra e o silêncio, o visível e o
invisível, etc. Um ritmo vital será, pois, necessariamente “coxo”. Nunca o
ritmo automático e unilateral da máquina (que descarta o pensado, o lento, as
asperezas, etc). Tampouco o ritmo musical, harmônico, que segue passo a passo a
partitura (o programa). Em todo caso, o ritmo do free jazz: plural, dissonante, aberto à improvisação. Um ritmo que
assume e incorpora os silêncios, as
marés baixas, as falhas, os acidentes, etc.
Névoa. A HC, como temos visto, governa
extraindo e processando informação, porém a informação só é a parte codificável
da comunicação humana. A névoa seria a estratégia que confunde as exigências de
transparência, de univocidade, de identificação. O que protege o olhar
inquisitorial (“quem és?”) e permite que uma experiência possa se dar,
desenvolver-se, encontrar seu próprio ritmo, suas próprias palavras para
nomear-se e compartir-se (o que poderíamos chamar a “autogestão do sentido”).
Em cada
gesto de desaceleração, em cada coxeadura que encontra seu ritmo, em cada foco
de névoa, se gera um pequeno apagão. Uma zona de opacidade, dissimulação,
liberdade, vida. Intermitente ou duradoura, pessoal ou compartilhada, pequena
ou grande. Essas experiências podem se coordenar, se amplificar até gerar um curto-circuito
fatal para a máquina cibernética? Sim, porém desde logo não se agrupando em
algum não-lugar (partido, organização ou plataforma), mas mediante um efeito de
reverberação: cada um desde seu
lugar, em meio à vida, porém ressoando e intensificando seu efeito com os
demais. Até alcançar um dia, talvez, quem sabe, um ponto crítico de
desestabilização do sistema e provocar o Grande
Apagão.
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